As facas de meu pai
- ruafrutapao
- 20 de jan. de 2019
- 6 min de leitura
Atualizado: 24 de jan. de 2019

(Belchior)
Num painel gigante, branco, limpo, estão dispostas facas. Uma a uma, enfileiradas. Facas. De vários tipos, modelos, tamanhos. Facas. Chego mais perto e constato: sim, são todas facas.
Acompanha cada faca sua respectiva capa de couro. Em cada capa, uma sentença: AL. As iniciais AL seriam de Alagoas? Não. O L é L de Lobato, cujo sobrenome é o mesmo da artista: Lise Lobato.
As facas de meu pai é o nome da instalação. São 106 facas acompanhadas das bainhas que protegem o fio, a lâmina crua. São 106 facas que também ameaçam o filho, a mulher. Que silenciam a força. Faca como extensão do próprio corpo, da própria força masculina como são os rifles dos soldados em Nascidos para matar, filme de Kubrick, em que uma das muitas ordens é nomear e cuidar cada arma como se fosse sua namorada. Erotismo canalizado para o que fere. O pau brocha pra arma se soerguer, soberba.
A faca fala
Assim como a faca atravessa o corpo quente, a carne macia, a obra de Lise Lobato atravessa o espectador, os anos, a matéria, a geografia.
Ao retirar de casa, do íntimo, da coleção pessoal, a instalação expõe a realidade comum a tantas outras mulheres, sobretudo no nordeste, seu lugar de nascimento. Ao vasculhar o que está dentro do lar, ao vasculhar sua noção de origem e família, Lise Lobato dá visibilidade ao que é anterior, ao que não está exposto lá. A obra é silenciosa e nos obriga a olhar através.
Uma mulher diante de As facas de meu pai sabe exatamente onde dói, onde aperta, onde fere, por que sangra. Uma mulher diante de As facas de meu pai sabe que a morte está no cangote. Uma mulher diante de As facas de meu pai sabe que o medo começa antes. Começa já na infância.
O que se vê através de As facas de meu pai: a hora da volta ao trabalho em que primeiro bate o medo, depois bate o pai. A noite com o abuso ao pé da cama. O grito sem motivo no ouvido, a intolerância, a ameaça e, em última instância, o corte físico.
(Antes que a faca corte o corpo, já fomos dilaceradas. A faca leva o que é matéria, mas a palavra-paulada chega primeiro.)
Onde estão as facas de meu pai?
Onde estão as facas de seu pai?
Rio teve um feminicídio a cada 24 horas nos quatro primeiros dias de 2019. RJ tem 4º caso de feminicídio nos primeiros quatro dias de 2019. Garrafadas, facões, tiro: 2019 já registra ao menos 12 casos de feminicídio.
A instalação de lâminas e bainhas é um manifesto que narra história por trás dos dados: ainda não completamos um mês em 2019 e já são mais de 40 feminicídios. Sabendo que apenas 10% dos casos chegam a ser denunciados, é possível dizer que passamos dos 400 casos de violência contra a mulher.
O que dizem as facas de meu pai?
O que dizem as facas de seu pai?
A faca falo
A coleção de facas de um homem parece esconder uma vulnerabilidade da própria condição masculina. A faca é um objeto fálico, assim como o pedaço de madeira, o pênis, o cassetete, o rifle, a caneta, o osso. A guerra. Tudo o que pode matar parece fazer parte da anatomia mesma do homem.
É como se o desejo de ferir - e fere - dissesse mais sobre aquilo que dói em si. Em “Uma faca só lâmina - ou serventia de uma ideia fixa”, poema de João Cabral de Melo Neto de 1955, o sujeito é assemelhado ao objeto, como uma espécie de continuidade da faca. Homem-só-lâmina: um carrega a existência do outro no próprio corpo.
assim como uma faca
que sem bolso ou bainha
se transformasse em parte
de vossa anatomia;
qual uma faca íntima
ou faca de uso interno,
habitando num corpo
como o próprio esqueleto
de um homem que o tivesse,
e sempre, doloroso
de homem que se ferisse
contra seus próprios ossos.
é contudo uma ausência
o que esse homem leva.
Isso que não está
nele está como a ciosa
presença de uma faca,
de qualquer faca nova.
O homem do poema cabralino tem uma faca cravada de modo permanente, é “sempre doloroso”. A faca, nesse caso, é nada mais que uma ausência irreparável. É a impossibilidade de conexão do sujeito com o mundo, de interação do sujeito com o próximo, porque tudo corta, tudo machuca, tudo dói. Este sujeito não sabe lidar com a falta, não sabe responder, não sabe ser de outro modo senão ele mesmo uma faca ambulante “sem bolso ou bainha”, “uma faca íntima/ ou faca de uso interno”, cortando, ferindo, podando quem se aproxima.
Uma faca só lâmina - ou serventia de uma ideia fixa.
Ideia fixa: matar para não morrer.
Ideia fixa: obsessão pela “presença de uma faca”.
Mais recente, em 2015, a autora mineira Ana Martins Marques vai retomar a faca como tema inteiro de um poema.
Como chamar faca
tanto aquela
enfiada na fruta
como aquela
enfiada no peito?
Entra em jogo a questão da insuficiência do significante (isto é, a insuficiência do registro escrito, da forma, da imagem acústica). A palavra, é preciso admitir, não dá conta do conceito. O significado é mais potente diante do que está expresso no significante.
O que seria então, nesse sentido, o objeto faca?
Antes ainda: o que seria, nesse sentido, o objeto?
A palavra objeto vem do latim objectare e pode ser dividida em ob + jacere, isto é, ob para “à frente de” e jacere para “atirar, jogar”. Considerando a etimologia, ao contrário de como usamos via de regra, um objeto não é um artefato estático, parado. Objeto estaria mais próximo ao projeto, projétil (cuja raiz jacere é a mesma): é algo que se joga bem na nossa vista. Objeto que se atira, que avança.
(Que triste são as coisas consideradas sem ênfase, escreve outro mineiro, Drummond.)
Se o objeto chamado faca se agarra à mão de quem o manuseia, cabe, então, ao sujeito decidir que função esta faca terá. O foco é, portanto, menos o objeto e mais o sujeito que rege, que dirige, que determina a ação. A função dos objetos está dada e, não se engane, é dúbia. E se a palavra, de novo, não dá conta do conceito, muito menos da ação.
Como pode o que corta o alimento também matar? Como chamar pedaço de madeira tanto aquele que funciona como coluna das casas quanto aquilo que agride? Como chamar pênis tanto aquele que dá prazer quanto aquilo que estupra? Como chamar caneta tanto aquela escreve quanto aquilo enfiado no pescoço?
Tudo o que pode matar parece também fazer parte da anatomia mesma se não do homem, pelo menos do desejo humano que flerta com a morte.
Ainda Ana Martins:
como chamar peito
tanto o peso oco do meu coração
quanto o peso oco do teu coração?
A ausência irreparável que “o homem leva” do poema cabralino em nada se distancia do “peso oco do coração” no verso de Ana Martins Marques. Isso me lembra que uma das muitas hipóteses para os suicidas românticos decidirem cravar o punhal no meio dos peitos é porque ali, naquela região, de acordo com a cultura oriental, está o chakra cardíaco. Isto é: o centro do peito pode ser tanto o centro do amor como também o centro da angústia, da amargura, do ressentimento. O centro do vazio que não explica nas tardes de domingo e só a faca, a mesma que corta fruta, que corta carne, pode resolver.
A instalação As facas de meu pai, de Lise Lobato, não diz nada disso.
A instalação As facas de meu pai, de Lise Lobato, pode dizer tudo isso.

Lise Lobato nasceu em Belém, Pará. Licenciada em Educação Artística pela Universidade da Amazônia, é especialista em Semiótica e Artes Visuais pela Universidade Federal do Pará. Seus trabalhos incluem desenhos, pinturas, objetos, instalações. Dentre as exposições individuais estão: “Quarta Ocupação” (2001), “O Silêncio do Branco” (2002), “O Que tu Guardas” (2004), “ Meu Quintal é do Mundo” (2006) e “Nás Águas do Arari” (Prêmio de Artes Visuais do Banco da Amazônia, 2008). Foi premiada na III Bienal de Arte Contemporânea de Mato Grosso (2004). Tem obras em acervo de museus e espaços culturais nos Estados do Pará, Paraíba, Rio de Janeiro e em Portugal. Atualmente vive e trabalha em Belém. As facas de meu pai participou de exposições no Salão Arte Pará 2005, Banco do Brasil em São Paulo 2006, Espírito Santo e Belo Horizonte na Exposição “Amazônia a Arte” 2010. Hoje integra o acervo do Museu de Arte do Rio (MAR).
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