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Cadernos são "Problemas Universais": uma editora no arquivo Ana Cristina Cesar


Quando você morrer os caderninhos vão todos para a vitrine da exposição póstuma. Relíquias.


I. Basta dizer o nome Ana Cristina Cesar para desfilar diante de nós os muitos mitos que pairam sobre a poeta. Um deles é a imagem de Ana quando criança – a Ana quando criança muitas vezes vem acompanhada de adjetivos como “prodígio” e “genial”.


Por algum tempo, me perguntei por quê e como.





Nas mãos, me vejo com o exemplar de Inéditos e dispersos (1998), organizado por Armando Freitas Filhos e publicado pela Editora Brasiliense. Interrompo a leitura do volume logo nas primeiras páginas. São apenas dois versos mas que trazem, por trás, uma inteira paisagem:


Tenho ciúme deste cigarro que você fuma

Tão distraidamente.


Estes dois dísticos são o poema “Ciúmes” e estão datados: abril de 1968. Faço, então, as contas: Ana Cristina Cesar tinha 14 anos e uma mão cheia de palavras arrojadas. Noto que publicados não estão só aqueles dois bem resolvidos versos, como há outros poemas de qualidade deste mesmo "período inicial", digamos. Não me parecia sorte de principiante. Antes, esses textos indicavam uma leitora familiarizada com a criação, uma leitora à vontade com a linguagem poética.


Quando a poeta nasceu?

Pergunto de novo: quando a poeta nasceu?


Com essa questão embaixo do braço, me dirigi ao seu arquivo pessoal, sob a guarda do Instituto Moreira Salles. Na sala de pesquisa, abro as 9 caixas brancas que trazem adesivadas logo na frente a sagrada sigla Pi - Produção intelectual. Ali estão 296 itens documentais. Destes quase 300 registros, 24 são cadernos sendo a maior parte deles produzida durante a infância.


O que as crianças dizem? – faço coro com Deleuze.


Diante daquele volume de cadernos reconheço a caligrafia ainda incerta da pequena Ana C. e lembro o que diz o poeta francês René Char: “caderno guarda traços da passagem do poeta; não provas”.


II. Faço um arco entre as décadas.


Ana só publicaria em 1979, ao lançar Cenas de abril e Correspondência completa, ambos editados ainda de forma independente dentro do contexto da poesia marginal carioca. No entanto, esses dois primeiros títulos não foram, a rigor, seus primeiros livros.


Folheando especificamente aqueles cadernos da infância em seu arquivo, reparo que se repete em vários deles uma anotação: a “Editora Problemas Universais”.


Transcrevo aqui algumas das aparições:


“Este livro foi impresso, escrito, cartonado e figurado na Editora Problemas Universais”

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Editora Problemas Universais

Começado a 15-2-65 e terminado no dia 17-2-1965

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“Este livro é um grande lançamento da já famosa Editora Problemas Universais. A autora escreve fábulas antigas de modo certo, atualizando-as e acertando-as. Temos certeza como você gostará deste livro, que é mais um dos sensacionais livros da grande autora ANA CRISTINA CESAR!!!

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A EDITORA PROBLEMAS UNIVERSAIS apresenta O MISTÉRIO DO LAGO AZUL

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Impressx, preparadx, revistx, ilustradx, cartonadx, etc, nas xficinas da prxblematicx

Editxra Prxblemas Universais Sxciedade Anxnima dx Brasil e dx Mundx




III. Daquele levantamento inicial de 24 cadernos escritos quando Ana Cristina tinha entre 9 e 14 anos, há 10 “publicados” pela Problemas Universais como se fossem livros.


Estão presentes ali “todas as rubricas do dispositivo livro que permitem julgar o volume sem precisar penetrar nele”. Estão presentes, portanto, uma perigrafia, segundo Antoine Compagnon: notas, índices, prefácio, prólogo, introdução, apêndice, anexos…


O faz de conta infantil expresso nestes cadernos-livros pode ser lido como “A busca da Fantasia [que] já é uma Narrativa”, de que fala Roland Barthes.


E de que maneira se manifesta essa Fantasia, essa Narrativa?


É o como se trabalho no livro de Barthes, A preparação do romance. No caso de Ana Cristina Cesar, é a preparação de uma editora. O jogo, nos cadernos, se dá no desejo de produção como se fosse editora, como se fosse poeta, como se fosse crítica literária. O jogo se dá, portanto, na suspensão da realização do desejo. Isto é, na suspensão do fim da obra, que seria a publicação.


IV. Abro um parêntese na editora Problemas Universais para pensar mais detidamente sobre o suporte em que ela passa a existir.


O caderno exerce em sua relação com o tempo cronológico um efeito de antecipação. É um projeto no sentido etimológico mesmo da palavra: pro+objectus, um objeto produzido hoje com vistas para frente, para o futuro. Os cadernos publicados pela Problemas Universais antecipam assim um programa e, sobretudo, uma personagem que só bem mais tarde se delineará. Por enquanto, nesse tempo aqui, nesse espaço aqui, é ainda a criança, a adolescente, a estudante, que se arrisca na literatura.


Mas se o tempo do caderno é futuro, se o tempo do caderno é quando, o tempo do caderno também se volta para o passado por um efeito de rememoração. Escreve-se para registrar. Retorna-se anos depois ao que foi registrado. Movimento para trás.


Não menos importante é pensar no caderno como uma plataforma lacunar que guarda um gesto de potência criativa em todos os seus erros, rasuras, tentativas - pensamentos que ainda não passaram pela faca só lâmina da publicação.


Nesse sentido, pode-se, através destes cadernos, tomar emprestada a tríade esquematizada por Foucault no conceito da “Escrita de si” como um exercício pessoal: meditar (meletan), escrever (graphein), treinar (gymnazin).


“Meditar nesse sentido mais como um exercício do pensamento sobre si mesmo reativando o que se sabe, exercício este que precede às notas, as quais permitem a releitura que, por sua vez, relança a meditação”.


Isto é, meditar sobre o escrito convoca o que sabe, o que foi aprendido. Aparecem, assim, novas ferramentas de leitura para fazer novas notas ou novos poemas que serão relidos relançando de volta à meditação.


O movimento é de uma redação continuada, cíclica. Ler, escrever e editar são, portanto, uma única experiência.


O aspecto aparentemente descosido, fragmentário do pensamento deitado no papel, "encontra na recolha do próprio sujeito escrevente o termo em comum. O caráter heterogêneo e díspar não exclui a unificação que se estabelece no próprio escritor".


V. Em Os oito pronomes pessoais há pelo menos quatro sujeitos.

É um corpo dividido em heterônimos.


Há a versão da poeta, da autora, que é movida a escrever, a arranjar as ideias, a organizar as palavras de modo que elas digam, como já citei, “tenho ciúmes deste cigarro/que você fuma tão distraidamente”.


Há a versão da leitora, que se afasta parcialmente apenas para ler o que a autora escreveu. A leitora, no entanto, não é ingênua: ela fareja o que soa mal no poema.


Há a versão da crítica – aqui travestido de Abrocado R. Miro, que, com mão firme e irônica, recupera poemas escritos ainda na infância e dá seu parecer sobre o lido e sobre a autora sem poupar as gorduras.


E, por último, há a versão de um perfil editorial ou organizador editorial, que reúne todos os outros três sujeitos. Não apenas a maior parte dos poemas é datada, como o são os comentários, de modo que é possível refazer o caminho deixado por Ana. Como se seguíssemos um mapa.


Ao final de Os oito pronomes pessoais, vê-se a já famosa editora “Problemas Universais” chegar a seu fim. O caderno-livro, que era um presente de aniversário para o pai de Ana, Waldo Cesar, é o último em que o nome da editora aparece.


“Pai, a E.PR.U (Editora Problemas Universais) falhou por completo pela primeira vez. A péssima impressão, cheia de erros, a marginalização péssima das páginas, tudo péssimo, péssimo, péssimo. Mas não ligue não que tudo isto foi dado com MUITO AMOR, com uma porção de votos e desejos que não se dizem em voz alta, mas são transmitidos, do pai para filha tão… tão loucamente (como no caso do saco plástico). Paitusco, boa noite. Durma bem e sonhe com as rosas da capa.”





VI. Ao contrário do que poderia supor, não encontrei em Problemas Universais “traços da passagem da poeta” Ana Cristina Cesar. Dos 10 cadernos-livros, apenas um é de poemas. Os outros 9 são textos em prosa que vão de memórias, fábulas, crônicas, até trabalho escolar sobre o México que traz a indicação de ser, naturalmente, “Volume único – 1ª edição: escrito, relido, corrigido, “impresso”, encapado etc nas “oficinas” da “editora problemas universais”.


Se a editora fictícia que vive nos cadernos não guarda “traços da passagem da poeta”, certamente deixa evidente traços da passagem da profissional de letras que Ana C. se tornaria.


Ao criar toda uma perigrafia com índices, paginação, colófon, notas de rodapé, ao desenhar as capas dos livros, ao ensaiar suas publicações, Ana C. está exercendo um ato muito peculiar.


Já beirando os 30 anos, em 1980, ela, que estava fazendo mestrado na Inglaterra, escreve uma carta à Heloisa Buarque de Hollanda, sua professora na UFRJ, orientadora e amiga. Ana diz que “escreve um caderno”, que quer “fazer um livro que é prosa, que é quase um diário, que conta grandes coisas se passando nos quartinhos”.


Este caderno-livro/prosa/quase diário, lembrando a iniciativa editorial da infância, seria Luvas de pelica, publicado no ano seguinte já no Brasil:


Escrever é a parte que chateia, fico com dor nas costas e remorso de vampiro. Vou fazer um curso secreto de artes gráficas. Inventar o livro antes do texto. Inventar o texto para caber no livro. O livro é anterior. O prazer é anterior, boboca”.


É interessante pensar no processo que Ana C. percorre até que este seu livro, Luvas de pelica, seja finalmente publicado. Ela compra o material, faz o “art work com tesoura e cola” e imprime a edição “numa velha garagem no meio do mato com pinheiros e carneiros”.


Fechei o texto e resolvi fazer no ato. O irmão do Chris [Christopher Rudd] tem uma offset na garagem, em Yorkshire. Já tive a primeira aprendizagem. Mão de obra seremos nós. Como não estou no Brasil, acho que posso trocar o mercado pelo prazer do papel. Saí em campo e descobri umas lojas diabólicas em Londres, onde você senta e fica folheando milhares de mostruários de papel. Comprei o catálogo Letraset e passei as tardes brincando. E uma caneta Rotring porque sou eu que vou compor o livro à mão. (...) Estou incluindo amostras para você dar palpite. Em princípio o tamanho é esta folha onion skin dobrada ao meio. Tem uma Fine Papers em Covent Garden que é uma loucura, coisas feitas a mão e tal. Aprendo igual a aprendiz, coated papers, uncoated, tecnicalidades do cacete.


Brincar, compor à mão, uma aprendizagem ou o livro dos prazeres: inconsciente, ou não, assim Ana retorna a Problemas Universais, a editora de sua infância.


Numa participação na Conferência Literatura de Mulheres no Brasil, organizada pela professora Beatriz Resende em 1981 – ano seguinte à carta –, Ana Cristina comenta que mulher começa a escrever no íntimo; não escreve direto no jornal. é na carta, no diário. Talvez tenha fugido à própria Ana perceber que a manifestação da escrita feminina, o ensaio, o bastidor, o como se, não acontece apenas na correspondência ou nos diários. Acontece, também, no espaço dos cadernos – este corpo, folha limpa, branca, mudo convite que tudo pode receber.


Os cadernos-livros publicados pela Problemas Universais, que Ana C. dirigiu diligentemente dos 9 aos 14 anos, permite adivinhar, como se já não soubéssemos, até onde levaria seu interesse pela prática literária.


Não era mais uma criança brincando de publicar.

Não era mais uma menina com seu livro.

Era uma mulher com seu futuro amante.



esse texto foi apresentado no XIV Congresso Internacional da Associação de Pesquisadores em Crítica Genética, em outubro de 2019, em Curitiba.

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