Arquivo literário ou Sombras dançam neste incêndio
- ruafrutapao
- 21 de jul. de 2019
- 9 min de leitura
Atualizado: 5 de out. de 2019
A coroa sobreviveu à cabeça.
A mão perdeu para a luva.
A bota direita derrotou a perna.
"Museu" - Wislawa Szymborska
1. Em branco
Diante de “Wrinkle”, eu e ele estávamos diante do tempo. Era dezembro em Buenos Aires. Ainda não sabíamos que aqueles seriam os últimos dias do nosso casamento.
2. Rugas
Nunca me esquecerei desse acontecimento na vida das minhas retinas tão fatigadas e míopes: dez imagens emolduradas individualmente estavam dispostas na vertical. Uma exatamente embaixo da outra. A primeira quase tocava o teto. A última era certo de que tocava o chão. O que se via era um caminho invertido: em vez de abrir, fechar. Em vez de esticar, amassar. Em vez de preencher, descartar. Torcer, embolar, recolher.
Ao lado, a legenda dizia: Wrinkle / Arruga (1968), Liliana Porter.
3. O que poderia ter sido e não foi
A folha branca e intacta do primeiro quadro tudo por receber. É um corpo, um campo aberto, mudo convite para a escrita, se quiser escrever. Convite para um poema, se o que escrever for um poema. Convite para uma lista de mercado, se for uma tarde de domingo.
Na sequência vemos que o destino brilhante da folha caminha para um outro fim: se contorce aos poucos e cada vez mais. A princípio, forma-se uma pequena e delicada orelha como se fosse um movimento fino de origami. Logo vira um amassado desajeitado, bruto, que avança da parte inferior e contamina o meio e a parte superior da página. O processo, a partir da sexta imagem, é rápido e incontornável. Uma força bruta opera sobre a folha frágil encurralando-a, oprimindo-a até que se torne uma pequena e tímida bola de papel.
4. Inteiramente vazios
Os papéis são inteiramente vazios. Os papéis são inteiramente vazios.
Os papéis são arquivo.
5. A criação pressupõe rasura
Foi a partir de “Wrinkle” que entendi o arquivo literário.
Se a publicação de uma obra pode ser considerada seu fim, e um fim bem-sucedido, no arquivo, então, estaria seu ensaio, seu teste, seu fracasso.
O que se passa entre a página vazia e a página criada? Entre a ideia e a execução? Como o pensamento pensa? Como lidar com a ineficácia da mão e da linguagem diante da velocidade desse mesmo pensamento que já veio e vai passar? Como opera a faca só lâmina que lapida o excesso do poema ainda em construção ali no manuscrito?
Esse processo não vai para o lixo. Vai para a gaveta, fica em arquivo. Faz parte.
Didi-Huberman nesse instante nos dá a mão para dar um passo dentro. No catálogo da exposição “Atlas — ou como levar o mundo às costas”, realizada no Museo Reina Sofia em 2011, em Madri, o filósofo francês destaca que a opção da curadoria foi reunir não pinturas conhecidas dos artistas expostos, mas compreender
como trabalham esses artistas e como este trabalho pode considerar-se desde o ponto de vista de um método autêntico e, inclusivamente, desde um conhecimento transversal, não estereotipado, o nosso mundo. Nesta exposição não se vêem as belas aquarelas de Paul Klee, mas o seu modesto herbário e as ideias gráficas ou teóricas que brotaram dele; não se vêem os modernos “quadrados” de Joseph Albers, mas o seu álbum de fotografias realizado sobre a arquitetura pré-colombiana; tão pouco as imensas pinturas de Rauschenberg, mas uma série de fotografias reunindo objetos tão modestos como heteróclitos; não se vêem as magníficas pinturas de Gerhard Richter, mas uma secção de montagens realizadas para o seu "Atlas" de longa duração; não se vêem os cubos minimalistas de Sol LeWitt, mas as suas montagens fotográficas nas paredes de Nova Iorque.
O interesse, portanto, se dá mais em como – o processo – do que em o quê – o produto. “Em vez das pinturas (como resultado do trabalho)”, diz ele, “preferimos, as mesas (como espaços operativos, superfícies de jogo ou de realização do trabalho)”. Ao comentar a obra mestra de Aby Warburg, “Mnemosyne”, Didi-Huberman destaca a força do método daquele já que seus objetos de investigação são constantemente “montados, desmontados, remontados”.
Um passo atrás, nesse mesmo sentido, e podemos falar de “Wrinkle”, visto que a obra de Liliane Porter faz emergir visualmente o jogo entre o criador e a coisa criada; dificilmente se ganha, mas vale a aposta, o risco e também a perda.
Amassar papel.

6. Onde os mortos têm vez
As salas de pesquisa em instituições de guarda costumam ser de um silêncio ensurdecedor, silêncio
muito mais violento que qualquer algazarra de pátio de escola; sobre um fundo de recolhimento de igreja, ele corta, isola impiedosamente os ruídos os corpos, o que os torna ao mesmo tempo agressivos e perniciosamente causadores de ansiedade. Uma respiração um pouco forte logo dá a impressão de estertor agônico, enquanto um simples hábito (massagear o nariz em sinal de meditação intensa, por exemplo) se transforma em tique monstruoso, a ser tratado com urgência em hospital psiquiátrico.
Invisível, parece surgir entre o pesquisador e o documento uma esfinge que ameaça
nos devorar por que não a compreendemos; e nunca a compreenderemos porque o “arquivo jamais pinta homens por inteiro”.
Não se vai ao arquivo para encontrar uma verdade, uma raiz, uma resposta. Ao
contrário, dentro do arquivo a autoridade absoluta é do documento que dispara em nós suas próprias perguntas: o que sou eu, quem sou eu, a quem me ligo, em que tempo.
Para Deleuze, “se árvore impõe o verbo ‘ser’ o rizoma tem como tecido a conjunção
‘e...e...e...’. Há nesta conjunção força suficiente para sacudir e desenraizar o verbo ser”. O
arquivo, portanto, se movimenta dentro de uma lógica rizomática em que um documento
familiar se conecta a outro que, por sua vez, se une a uma carta e depois a uma foto formando uma rede de sobrevida entre os papéis.
É ali que os mortos têm vez, voz e verso.
O filósofo alemão Ernst Cassirer, frequentador da Kulturwissenshaftliche, diz sobre a
biblioteca de mais de 60 mil volumes de Aby Warburg: “Não se trata meramente de uma coleção de livros, mas de uma coleção de problemas”.
Se coleção/arquivo/biblioteca é um problema, podemos também aqui usar a imagem esfinge, cuja figura não é gratuita. A palavra vem do grego sphinx, “aquele que estrangula”, a partir do verbo sphingein, “apertar, atar”. Essa definição dá conta de certa dinâmica que se estabelece entre o pesquisador e seu objeto de interesse; entre o pesquisador e o desembrulhar do que seria aquele romance, aquele poema, aquela carta e que agora não passa de uma massa disforme em “Wrinkle”.
A esfinge aperta nossa garganta.
7. Falhar melhor
Em "Escrever", Marguerite Duras comenta sobre escrever não apesar do desespero, mas escrever com o desespero. E continua:
que desespero, eu não sei, não sei o nome disso. Escrever ao lado daquilo que precede o escrito é sempre estragá-lo. E é preciso no entanto aceitar isto: estragar o fracasso significa retornar para um outro livro, para um outro possível deste mesmo livro.
Esse breve ensaio, a composição de uma música, a tela em branco, qualquer produção intelectual: o primeiro flerte é com o desconhecido, com o equívoco, com o mau arranjo, o impossível. O fracasso é uma aposta. Para Duras, mais que isso: o fracasso vem e não deve ser evitado partindo para um novo projeto.
Em “Wrinkle”, atua um corpo in absentia agitado, em conflito, com o que produziu. Sua criação é engolida pelo erro que sobe as paredes da página e ali se estabelece. Nestas páginas, a priori, estão guardados justamente o gesto vital, a vibração do pensamento em processo e a produção de um corpo feito usina aquecida.
Em prosa, Beckett parece dizer o mesmo que a artista Liliana Porter: “Tudo desde sempre. Nunca outra coisa. Nunca ter tentado. Nunca ter falhado. Não importa. Tentar outra vez. Falhar outra vez. Falhar melhor”. Falhar e não estragar o fracasso; antes, potencializá-lo, aceitá-lo, fotografá-lo, expô-lo.
8. No princípio, era o papel
Exilada de sua Buenos Aires, em 1964, Liliana Porter se muda para Nova York e não volta a morar na América Latina, embora permaneça em diálogo com artistas sulamericanos, sobretudo, com o uruguaio Luis Camnitzer e o venezuelano José Guillermo Castillo, com os quais fundaria a renomada The New York Graphic Workshop.
É vivendo o afastamento de seu país natal, um encontro intercultural e o duro momento político que a artista argentina testa limites, fronteiras e vínculos entre fotogravuras e impressão partindo do básico: o papel. Papel enquanto suporte e, ao mesmo tempo, como obra.
“Wrinkle”, originalmente, vem acompanhada de uma entrevista entre Porter e o poeta Emmett Williams, cuja primeira pergunta é: “são fotos enrugadas ou fotos de rugas?”. A resposta dela é categórica: “nem fotos são”. Para a argentina, trata-se de “naturezas-mortas de um processo dinâmico”. Evidenciar o processo é parte de um projeto conceitual mais amplo executado naqueles anos de 1968 e 1969. Liliana Porter experimenta amassar e rasgar o papel como a “edição de um gesto”.
Exatamente neste período, também em Nova York, a artista ítalo-brasileira Anna Maria Maiolino trabalha em um projeto semelhante também a partir dessa dobra do papel como matéria-prima e obra. Mas Maiolino, em vez de operar com o amassado, evidencia a resistência da folha sobrepondo camadas de papéis rasgados, criando buracos visuais num jogo de dentro-fora marcados por aberturas de janelas improváveis.
Se para Maiolino a arte é uma pausa, como ela declarou, a sequência de janelas criada nos quadros da série Desenhos/Objetos (1970-1976) seria uma pausa dentro da pausa: o papel respira, a letra descansa, o vazio lhe compõe. O buraco cavado, aberto, não aponta para uma falta, mas já é em si completo justamente por apontar a ausência como totalidade. A falta flagrada na obra é “inesquecível, indissolúvel e original”, como a falta que Derrida detecta no arquivo.
O arquivo, tanto quanto a obra, se forma por tudo aquilo que está ali e por tudo aquilo que não está ali também.
9. Este incêndio
Cabe pensar, junto com Paul Valéry, que os “os livros têm os mesmos inimigos do
homem: o fogo, a umidade, os bichos, o tempo e o próprio conteúdo”.
O papel do livro, a pele do corpo, a parede de casa: tudo é superfície para escrita.
Não vemos, mas adivinhamos: nas fotogravuras de “Wrinkle” dança uma mão que oscila entre a fúria do que não deu certo e o desânimo; uma mão que constata a falha e assume o risco do fracasso.
Não vemos, mas adivinhamos: o corpo da folha em contato com o corpo das mãos (como uma espécie de extensão) — igualados, pois marcados pela fragilidade da existência. Morre-se, afoga-se, acaba-se, decepa-se, queima-se, arranca-se, enterra-se. As rugas brotam tanto nos cantos do papel quanto nos cantos dos olhos.
Para Didi-Huberman, a experiência se dá “ao descobrir a memória do fogo em cada
folha que não ardeu” porque “o arquivo é cinza, não só pelo tempo que passa, como pelas
cinzas de tudo aquilo que o rodeava e que ardeu”.
Nós, frequentadores de museus, frequentadores de arquivos, somos sombras que
dançam neste incêndio.
10. Um ato de amor
O autor fantasmático de “Wrinkle” parece ter abandonado a escrita, o projeto.
Compreendo-o porque, sim, escrever dói. Cutucar a palavra em estado de dicionário exige uma quase penosa disposição tanto intelectual quanto física. “Desta luz que reverbera no tanque. Precisei de vinte anos para escrever isso que acabei de dizer”, registra Marguerite Duras, exausta.
Escrever, scribere, em uma das concepções etimológicas, é marcar com ponteiro ou haste de metal, gravar, traçar com cunho. Escrever é machucar o papel, tatuar a pele, circuncidar o pênis.
Derrida reforça os pares papel-pele/escrita-corte durante sua palestra no Freud Museum ao destacar que “sob cada folha, abrem-se os lábios de uma ferida para deixar entrever a possibilidade abissal de uma outra profundida prometida à escavação arqueológica”. “Ler”, continua ele, “é trabalhar nas escavações geológicas ou arqueológicas sobre suportes ou sob superfícies de pele, novas ou velhas, as epidermes hipermnésicas ou hipomnésicas de livros ou de pênis”. A conclusão é belíssima: encardenar – portanto, cobrir, cuidar, proteger – seria um ato de amor.
Se para o autor/artista há dor na gestação de uma obra – me valho aqui da metáfora amplamente usada pelos estudos de crítica genética –, para quem consome, lê, vê, usufrui, o contato com a obra pende para o prazer. O deleite estético da obra de Liliana Porter, por exemplo, se dá de forma passiva enquanto observamos aquilo que o outro dispensou, aquilo em que o outro fracassou.
11. Outro ato de amor
Foi a partir de “Wrinkles” que entendi o que seria um arquivo literário.
O debruçar-se sobre o arquivo é também se deparar com o papel amassado e, com cuidado, desembrulhá-lo esperando suas perguntas de pequena e incontornável esfinge capaz de deslocar tantos tempos possíveis: o da escrita, o da rejeição ao que se escreveu, o da permanência do documento ainda que rejeitado pelo autor na gaveta, o da morte do autor, o da vida do autor, de sua pós-vida, o do interesse e investigação do pesquisador.
Não se vai negar que há como que uma espécie de magia em lidar com documentos originais – um efeito de real: a ressurreição do próprio autor, nosso Lázaro, nosso dibuk, nosso fantasma, cuja voz atua sendo silêncio.
12. Buraco
É preciso voltar e olhar de novo aqueles quadros vazios.
É preciso voltar e olhar de novo aqueles quartos vazios, foi o que pensei ainda em Buenos Aires pensando no meu próprio fracasso.

Relembro Liliana Porter na onda da campanha #5WomenArtists iniciada pelo National Museum of Woman in the Arts. O movimento é uma chamada à discussão e circulação de artistas mulheres.
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