Entre a morte e a morte
- ruafrutapao
- 11 de mai. de 2019
- 6 min de leitura
Atualizado: 12 de mai. de 2019
E a morte passa de boca em boca
com a leve saliva

Se a morte pode ser considerada, pelo menos na cultura ocidental, como o principal episódio trágico, a religião seria, por outro lado, a antitragicidade. Nesse ponto, religião e ciência dariam as mãos já que nem uma nem outra suportam a ideia do fim, nem uma nem outra suportam a irreversível sentença de morte. Ambas investem (e inventam) esforços nas suas respectivas áreas para esticar os dias aqui na Terra. Promessa de felicidade, promessa de para todo o sempre: remédio para curar, água benta para limpar, tratamento para um corpo com órgãos.
Para falar sobre a Indesejada das gentes, é preciso dar um passo atrás e lembrar do deus cristão, emulando Burle Marx, no jardim das delícias. Na condição de paisagista supremo, ele planta duas espécies mágicas: a árvore da vida e a árvore do conhecimento do bem e do mal. Nos atemos à primeira árvore, a da vida. Que fruto daria? Que aroma teria? Imagino que o sabor seria de tempo contínuo, de um dia depois o outro e mais outro e ainda outro. O eterno-sempre: as tardes nunca acabam, o corpo não apodrece. A árvore da vida decreta, portanto, uma sentença de vida.
Se o deus cristão cria o homem à sua imagem e à sua semelhança, o que nos faz humanos e não outros deuses? O próprio deus dirá que é a morte. Não comer da árvore do conhecimento do bem e do mal (repito, do conhecimento) e não morrer nos faria um deus completo: à imagem, semelhança e temporalidade.
Logo no início do filme Der himmel über Berlin (O céu sobre Berlim ou, na tradução brasileira, Asas do desejo), dois anjos estão entre os humanos e avaliam seus dias na Terra. Um dos anjos, Damiel, conta o que viu: “Uma mulher fechou seu guarda-chuva sob a chuva ficando ensopada. Um estudante descreveu o crescimento de uma planta ao seu professor, que ficou surpreso. Uma mulher cega pegou no relógio sentindo minha presença. É fabuloso viver só em espírito, dia a dia, eternamente... testemunhar o que é espiritual nas pessoas”.
No entanto, o anjo logo emenda uma adversativa à sua condição de eterno-sempre: “Mas às vezes fico farto com a minha existência espiritual. Gostaria de sentir um certo peso. Acabar com a ausência de fronteiras e me unir à Terra. Gostaria de, a cada passo, a cada lufada de vento, ser capaz de dizer agora, agora e agora. Não mais para sempre e pela eternidade. (...) Poder dizer: ah e oh e ei em vez de sim e amém”. E ainda alguém que diga: “Te amo tanto hoje”.
Ao tocar e comer o fruto proibido, Eva parece renegara sentença de eterno-sempre, proferida pelo deus, a que Damiel se refere. Eva diz agora, agora e agora.
Ao tocar, comer e dar o fruto proibido a Adão, Eva lhe diz “te amo tanto hoje” e inaugura a corrida da humanidade contra o tempo. Se experimentar é estar em perigo – como sugere a raiz latina perire presente nas duas palavras –, as ações da experiência para Eva não estavam em baixa.
A mulher que gera vida jamais poderia ser condenada à morte. Eva, sobretudo, carrega a vida não só no corpo, como no próprio nome/no nome próprio. De acordo com Haroldo de Campos, em Tríptico bíblico, a palavra Eva deriva do verbo hebraico hayá (viver). Tanto é que Haroldo adota o termo composto Vida-Eva na tradução que faz do Gênesis.
Ainda que o deus vocifere contra o casal, é do humano que ele precisa e depende, afinal, o que seria do deus se todos morrêssemos? Rainer Maria Rilke, em O livro das horas, faz o exercício de imaginar a resposta:
Deus, que será de ti, quando eu morrer?
Eu sou teu cântaro (e se me romper?)
A tua água (e se me corromper?)
Sou teu agasalho, sou teu afazer.
Vai comigo o significado teu.
Não tens mais sem mim aquela casa, Deus,
que com quentes palavras te acolhia.
Perdem teus pés exaustos as macias
sandálias: também elas eram eu.
De ti desprende-se o teu longo manto.
O teu olhar, que a minha face, quente
coxim acolhe, virá entrementes,
virá procurar-me longamente
e deitar-se depois, ao sol poente,
entre pedras estranhas, nalgum canto.
Deus, que será de ti? Tenho medo, tanto...
Nesse sentido, deus é a pessoa que eu ligaria a Rodrigo S.M., narrador de A hora da estrela. Rodrigo, o que será de ti quando Macabéa morrer? Ela era seu café frio que com sua mudez te acolhia. Ela, que dormia até o nunca, era o teu afazer. Vai com ela o significado teu.
Ao escrever que a cartomante decreta sentença de vida à moça alagoana, Rodrigo S.M. incorre num erro semelhante ao divino. Se é por Vida-Eva que a morte entra no mundo, é pela sentença de vida expedida pela madame Carlota que a “iniludível” se aproxima de Macabéa. Saída da consulta, carregando uma promessa de felicidade embaixo do braço, está condenada, grávida de futuro: “e tudo de repente era muito e muito e tão amplo que ela sentiu vontade de chorar”.
Mas e se tudo de repente continuasse pouco e mínimo e cada vez menor até sentir o nada? E se a poética do menos fosse uma práxis? Para Deleuze e Guattari, “não há tão grande, tão revolucionário, quanto o menor”. Para Damiel, o personagem de Asas do desejo, suponho que não haveria tão grande, tão revolucionário, quanto o agora.
Pergunto entre parênteses: o que pensamos quando pensamos na hora da estrela? Fernando Pessoa, por exemplo, tem “dó das estrelas/luzindo há tanto tempo/há tanto tempo...”. As estrelas são as interlocutoras do famoso poema de Olavo Bilac que, amando, com elas conversa toda a noite. De forma mais prosaica, estrela ainda é o clichê dos apaixonados: seus olhos são como estrelas. Estrela guardaria então a expressão do brilho máximo? O ápice? Esquecemos todos que as estrelas também morrem. Falemos então da hora da estrela que morreu. Feita de restos espaciais, a estrela que morreu pode ser ainda mais potente. A estrela que morreu pode ser 3 opções: uma anã branca (remanescente estelar composto principalmente por matéria eletronicamente degenerada), estrela de nêutrons (as menores e mais densas estrelas de que se tem conhecimento), um buraco negro (região do espaço da qual nada, nem mesmo partículas que se movem à velocidade da luz, pode escapar). Ora, o que pensamos quando pensamos nas estrelas? Pensemos que as estrelas também morrem e continuam – como permanecem as estrelas de cinema, os astros do rock e a estrela dessa novela, Macabéa. Fechemos o parêntese.
Nas páginas finais de Água viva (1973), a autora parece levantar o dedo em riste como faz Rilke no poema. Escreve intempestiva, contra o deus-tempo, contra o deus que, conforme predica a tradição cristã, seria “o autor da vida”: “Eu não vou morrer, ouviu, deus? Aliás não quero morrer. Recuso-me contra ‘Deus’”. Imagino que se houvesse o fruto do Éden na mão nesse instante, ela o teria mordido e oferecido a Adão-leitor, interlocutor passivo que observa e saliva diante da tentação. “Vamos não morrer como desafio?”, propõe Clarice. (Vai, morde.) [1]
Ainda em Água viva: “Não me mate, ouviu? Porque é uma infâmia nascer para morrer não se sabe quando nem onde. Vou ficar muito alegre, ouviu? Como resposta, como insulto”.
A alegria é, então e de novo, resposta firme ao interdito primacial divino que era um e virou dois: não toqueis e não comais. Vida-Eva não apenas toca, como também come-compartilha-comunga. Come contra deus. Imagino que se tivesse papel e caneta à mão, teria escrito: “Eu não vou morrer, ouviu, Deus?”. Do ponto de vista de Agamben, ao profanar a sacralidade do fruto, Vida-Eva se aproxima de um conceito de religião não como o ente que religa, mas como o ente que relega: religio seria“não o que une homens e deuses, mas aquilo que cuida para que se mantenham distintos”.

Certo tom de revolta tanto de Vida-Eva, quanto de Damiel e Rilke, parece encontrar uma base argumentativa comum se tomamos emprestado o final de Água viva: “nós não somos culpados”. Não somos culpados se o deus jardineiro não se antecipou a Marquês de Sade quando este foi certeiro em 120 dias de Sodoma: “a verdadeira maneira de espalhar e multiplicar os desejos é querer lhe impor limites”. Ao instalar duas árvores no centro do jardim das delícias, em que uma há decreto de morte e na outra, decreto de eternidade, o deus coloca em jogo sua divindade. Nesse sentido, quem tentou Eva não foi a serpente. Foi o próprio deus.
[1] Curioso notar que Clarice, assim como Eva, carrega a vida no próprio nome/no nome próprio: nascida na Ucrânia, foi primeiro chamada Haia. De certa forma, à sentença de morte, tanto uma quanto a outra são elas mesmas árvores de vida.
ilustrações
1. expulsão do paraíso, por michelangelo
2. le fruit défendu, por peter paul rubens
3. representações de adão e eva, por lucas cranach <3
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