Inventário de perdas
- ruafrutapao
- 28 de abr. de 2019
- 6 min de leitura
Atualizado: 5 de out. de 2019

Não me furtarei a reproduzir integralmente tanto o poema “One art”, de Elizabeth Bishop, quanto a tradução “A arte de perder”, por Paulo Henriques Britto, para pensar a perda, a falta, como uma prática minúscula, uma poética do menos, e, por isso mesmo, extremamente ampla.
A arte de perder
A arte de perder não é nenhum mistério;
tantas coisas contêm em si o acidente
de perdê-las, que perder não é nada sério.
Perca um pouquinho a cada dia. Aceite austero,
a chave perdida, a hora gasta bestamente.
A arte de perder não é nenhum mistério.
Depois perca mais rápido, com mais critério:
lugares, nomes, a escala subsequente
da viagem não feita. Nada disso é sério.
Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero
lembrar a perda de três casas excelentes.
A arte de perder não é nenhum mistério.
Perdi duas cidades lindas. E um império
que era meu, dois rios, e mais um continente.
Tenho saudade deles. Mas não é nada sério.
–– Mesmo perder você (a voz, o ar etéreo, que
eu amo) não muda nada. Pois é evidente
que a arte de perder não chega a ser mistério
por muito que pareça (Escreve!) muito sério.
One arte
The art of losing isn’t hard to master;
so many things seem filled with the intent
to be lost that their loss is no disaster.
Lose something every day. Accept the [fluster
of lost door keys, the hour badly spent.
The art of losing isn’t hard to master.
Then practice losing farther, losing faster:
places, and names, and where it was you meant
to travel. None of these will bring disaster.
I lost my mother’s watch. And look! my last, or
next-to-last, of three loved houses went.
The art of losing isn’t hard to master.
I lost two cities, lovely ones. And, vaster,
some realms I owned, two rivers, a continent.
I miss them, but it wasn’t a disaster.
— Even losing you (the joking voice, a gesture
I love) I shan’t have lied. It’s evident
the art of losing’s not too hard to master
though it may look like (Write it!) like disaster.
Logo nas três primeiras estrofes de “A arte de perder”, a poeta, em uma mão, localiza o leitor, o instrui: perca assim e assado, depois aceite assim e assado. Na outra mão, a poeta comenta as próprias perdas quase como exemplo dessa arte. Além do relógio da mãe, ela perdeu três casas que amava, duas cidades lindas, um império, dois rios, um continente e até mesmo você/o outro. Em todos os casos, uma conclusão: a arte de perder não é nenhum mistério, ainda que pareça sério.
O poema parece propor, pelo menos, três perguntas: como perder, o que se sente ao perder e o que se perde. E como perder? Bem, primeiro se perde um pouco a cada dia, depois se perde mais em quantidade (“losing farther”), se perde mais em velocidade (“losing faster”) e se perde em dimensão (“vaster”). O que se sente? Aquela agitação da mão que apalpa todos os bolsos e, tarde demais, já não encontra a carteira (“fluster”), sente também certa saudade e amor.
E o que se perde? Bishop faz uma espécie de inventário de perdas que agrupei em alguns conjuntos temáticos. Há perdas no nível material, como as chaves da porta, o relógio da mãe e três lindas casas; perdas relacionadas mais ao esquecimento, como esquecer nome de lugar, um nome e uma viagem; e perdas que, suponho, lhe pertenceram mais como uma cartografia afetiva, isto é, determinada cidade por que passou, a paisagem em torno de um rio, o fascínio por este império e aquele continente.
Mas a perda irreparável, o fundo do poço, o rés do chão, é, ao que parece, você. Perder não como se perde alguém para a morte – antes fosse e aí entraria em ação o processo do luto freudiano. Pior: perde-se não a pessoa, mas aquilo que só a ela é próprio e só diante da sua presença se pode encontrar. Perder, portanto, como estado permanente de ausência: nunca mais verá certo jeito com que movimenta as mãos (“a gesture”) enquanto conta um episódio naquele tom de voz divertido (“the joking voice”).
No último verso, lemos a única hesitação desse inventário de perdas feito até então num ritmo galopante e cadenciado marcado por verbos no passado e pelos pares master/disaster – critério/sério. Se tudo o que o sujeito havia perdido não se caracterizava como um desastre, agora, entre parênteses, surge como se fosse uma voz externa que exclama imperativa para fazer aquilo que a mão da poeta parece recusar: “Even losing you [...] though it may look like (Write it!) like disaster”. Estava evidente que, até aqui, a arte de perder – pelo menos, superficialmente – já estava dominada ainda que a contragosto, mas a gagueira final com a repetição de “like” nega o que o poema vinha afirmando. Perder você, perder aquilo que está em você, como a voz e o ar etéreo, no fundo, parece… parece, sim, de fato, um desastre.
(Desastre, dis-aster: os astros, os deuses, não lhe são favoráveis. Etimologicamente, é isto um desastre: os deuses-astronautas te abandonaram. )
No entanto, “se de tudo fica um pouco”, como registra Drummond no poema “Resíduo”, penso que a arte de perder se manifesta como um movimento, no mínimo, duplo: ao inventariar as perdas, Bishop também compõe o perfil do sujeito por aquilo que nele falta. Na linha do traço, do rastro. One art: perder e fazer da arte da perda, do fluster, do instante poético, uma outra arte, um poema. O sujeito que é amado, cuja falta é sentida como se fosse um desastre, ainda que permaneça ausente a vida inteira, não se perderá de todo já que foi guardado em um poema, como nos lembra Antonio Cícero em “Guardar”:
Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar.
Faço um arco através das décadas: se para Elizabeth Bishop perder não é nenhum mistério, penso que em Clarice Lispector talvez todo o mistério esteja em encontrar. O encontro com o cego, com o búfalo, com a menor mulher do mundo, com o mar. Encontro.
A primeira linha de A paixão segundo GH (1964) dá o tom: “------------- Estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender”. O leitor ainda não sabe o quê, mas a narradora está à procura porque “perdeu alguma coisa que [lhe] era essencial, e que já não é mais”. Durante a leitura do romance, é possível também reconstruir o inventário de perdas de GH: ela perde durante horas e horas a montagem humana, o medo do feio, perde a coragem de achar o que quer que tenha de achar, perde o deserto, mas também a floresta, perde o ar, o embrião dentro de si, perde todas as malas com suas iniciais gravadas – nem identidade tem: seu nome não se decifra, como uma esfinge. Perde ainda uma terceira perna criada depois de adulta. Ora, se duas pernas bastam para sustentar, o que seria a terceira perna? Um excesso, uma anomalia, uma prisão – e GH afirma que sentia falta de estar presa (por vontade), “sonsa e inquieta em minha feliz rotina de prisioneira”.
Como se entendesse que é preciso aceitar o “fluster” de que fala Bishop (a agitação do corpo que perdeu a terceira perna e que, mutilado, tem apenas duas), GH encontra certa alegria em perder e descobre, a partir do seu inventário de perdas, que perder não é bem um desastre. Em forma de prosa Clarice diz o mesmo que Bishop em poema: “perder não é nada sério”. Mas de Bishop se distancia – na medida em que a americana diz que X não é Y, Clarice predica a perda: X é Y.
Observo que Clarice acrescenta uma nova perda ao inventário de Bishop. Uma perda que não tem a ver com material ou com uma perda relacionada ao esquecimento, nem, sequer, com a perda do outro, que, em Bishop, é o principal nó dramático. Em GH, a perda maior é a perda de si: “a alegria de perder-se é uma alegria de sabbath”.
A alegria de se perder, ao contrário do “fluster”, faz nascer uma alegria de sábado, alegria sabática, alegria de descanso. Sábado: dia dedicado a Saturno pelos romanos (de onde virá saturday), equivalente a Cronos para os gregos, o deus-tempo. É do latim sabattum que deriva o sabbath hebraico. Mas não cuidemos agora de um deus pagão – importa a ideia que une as pontas das redes culturais-religiosas: sábado é o nada a fazer. Não há hipótese de pesadelo no sábado porque tudo funciona perfeitamente, até os maridos. Daí que poderíamos supor que se perder é entrar em um nada, se perder é a expressão máxima (ou mínima, já que estamos na linha de uma poética do menos) da falta de mistério. Se perder está longe, longe de ser um desastre.
Escrevo isso em um domingo de páscoa enquanto GH diz que “pelo pecado original, nós perdemos a nossa máscara”. Mas como perdemos nossa máscara se éramos cópia do deus, imagem e semelhança dele? A emenda divina é pior que o soneto: para reparar o pecado original, Jesus é enviado como sacrifício (um deus que a todos se dá, um messias que se bebe). Ele morre para conceder perdão. Por ironia etimológica, perdoar e perder são uma só palavra: per-donare. O generoso deus que perdoa é um deus que (se) perde.
Inventário de perdas enquanto rascunhava essas linhas: perdi um cachecol branco no bar, o dinheiro do curso e certo amor inquestionável que tinha pelo meu irmão. João perdeu o cartão de crédito, mas achou. Nicéa perdeu os óculos de sol.
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