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Quando desejos outros é que falam



Por que a poesia tem que se sustentar de pé, cartesiana milícia enfileirada, obediente filha da pauta?


(“Exterior”, Waly Salomão)


O amor natural, livro de poemas eróticos de Carlos Drummond de Andrade, publicado cinco anos após sua morte, não, não releva uma nova face do autor mineiro. Em Alguma poesia, título de estreia, já estão desejo, amor e corpo bem presentes. Lemos em 'Iniciação amorosa’:


Um dia ela veio para a rede,
se enroscou nos meus braços,
me deu um abraço,
me deu as maminhas
que eram só minhas.
A rede virou,
o mundo afundou.

O amigo Mário de Andrade comenta o livro em carta de 1º de julho de 1930:


Você, o suavíssimo, encheu o livro de detalhes pornográficos à (ponhamos) francesa, como a pele picada pelos mosquitos, o dente de ouro da bailarina; ou à portuguesa com as tetas”, acrescentando que o mineiro recheara “o livro de coxas e pernas femininas”.

É tudo no feminino: pele, teta, coxa, rede.


Com tom mais amoroso do que francamente libertino, o erotismo percorre toda a obra de Drummond. Os poemas de O amor natural não são ímpeto de velho sátiro, mas desejo destilado ao longo de anos.


Bichos da mesma espécie hão de se reconhecer no autor - que, pontua-se, era de escorpião, signo conhecido pela energia, digamos, venusiana.






O interesse de Drummond é manifesto pela grande quantidade de livros que reuniu . Na sua biblioteca pessoal, de mais de 4.500 exemplares, há uma fatia generosa de autores que abordam o erotismo. De Bernardo Guimarães (O elixir do pajé e A origem do mênstruo), a Pietro Arentino (Sonetos luxuriosos) e Silva Alvarenga (Poemas eróticos), passando por  antologias de poesias eróticas em francês e espanhol assinadas por Rubén Darío, Baudelaire, Apollinaire, García Lorca, Rimbaud, Pound, Neruda, Whitman, Superviell.


Destaco da estante Psychologie de l’art érotique (1971), de Pierre Cabanne, com oito ensaios ilustrados sobre o erotismo desde o Realismo até àqueles dias. Há também o curioso Quand les hommes rêvaient à l’amour, de Erik Nörgaard, uma espécie de levantamento-tutorial, do ponto de vista masculino, de itens obrigatórios que fariam parte do universo da “mulher dos sonhos” do final do século 19, início do 20: corpete, meias-calças, banho de mar…


Tarado também por cartões-postais, Drummond juntou as duas paixões em Cartes postales erotiques, reunião de litografias, collortypes e fotografias em forma de postais do século 19. Há de se ressaltar o Le sexe à l’écran, de Gérard Lenne, de 1978, uma compilação de artigos sobre filmes franceses lançados até aquele ano, dentre os quais fervilhavam Último tango em Paris (1972) e O império dos sentidos (1976). Neste livro, os longas estão agrupados segundo categorias como ninfomania, sadomasoquismo, homossexualismo, zoofilia, coprofilia, voyeurismo, sexo na natureza etc.





De sua biblioteca, destaco ainda dois dicionários: Dicionário erótico da língua portuguesa e Dicionário de termos eróticos e afins. Organizadas por Horácio de Almeida, em 1980 e 1981, essas obras nasceram da empolgação de Drummond em um Sabadoyle em 14 de junho de 1983:


Um dia, numa das reuniões de sábado, em casa de Plínio Doyle, alguém lamentou a falta, no Brasil, de um repositório verbal de erotismo, quando imenso é o vocabulário nacional da especialidade, herdeiro e continuador da tradição portuguesa.

Na época ainda recentes, publicações como Lexikon der Erotik (1976), de Ludwig Knoll e Gerhard Jaeckel, e Dictionnaire historique, rhetorique, étymologique de la litterature erotique (1978), do Pierre Guiraud, mostravam que o erotismo saía da alcova e constituía assunto digno de ser trabalhado com afinco e seriedade.


Entusiasmado, diz Horácio de Almeida no prefácio da primeira edição do dicionário, que “Drummond deu mais do que prometera”: além de ser o pai da ideia, influiu na sistemática da obra, colaborou com pesquisa de vocábulos, sugeriu trechos para ilustração dos verbetes e datilografou as muitas fichas manuscritas.


Dupla obstinada, Horácio e Drummond concluíram em oito meses a primeira edição, que se esgotou rapidamente. No ano seguinte, saiu a segunda edição, revista e ampliada, com quase 4.500 verbetes. Em dedicatória a Drummond, Horácio escreve: “O nosso livrinho teve uma segunda edição, conforme você previa. Eu não acreditava porque cria em mim, mas deveria crer em você”.




O amor natural não deveria causar espanto. Palavras de Drummond: “Tudo o que parece antinatural é natural”. E há de concordar que nada é mais natural do que o amor, do que amar. Natural são os corpos em ação, na ação: “Era manhã de setembro/e/ela me beijava o membro”.


Antecipando à régua do moralismo, O amor natural é um duradouro exercício criativo que une experimentação com o registro escrito e o corpo. Palavras genitais, cópulas consonantais: a língua é desdobrada, remexida, cutucada. O poeta encontra nos significantes ainda em “estado de dicionário” combinações sensíveis e licenciosas. E nada ofende ante o êxtase do escrito – somos tragados pelo amor, palavra essencial.


Um luxo: a construção de sonetos e versos alexandrinos, o trabalho com justaposição e aglutinação, assim como as metáforas criadas. Concha, berilo, esmeralda, pulcra rosa preta, porta hermética nos gonzos, gruta invisa, rosa pluriaberta, anêmonas castanhas, flora brava, fava da baunilha, moita orvalhada, trilha do demônio ao lugar santo… É impossível não ofegar diante de:


Não te vejo não te escuto não te aperto
mas tua boca está presente, adorando.
Adorando.

Ou ainda:


Você meu mundo meu relógio de não marcar horas; de esquecê-las. Você meu andar meu ar meu comer meu descomer. Minha paz de espadas acesas. Meu sono festival meu acordar entre girândolas. Meu banho quente morno frio quente pelando. Minha pele total. Minhas unhas afiadas aceradas aciduladas. Meu sabor de veneno. Minhas cartas marcadas que se desmarcam e voam. Meu suplício. Minha mansa onça pintada pulando. Minha saliva minha língua passeadeira possessiva meu esfregar de barriga em barriga. Meu perder-me entre pêlos algas águas ardências. Meu pênis submerso. Túnel cova cova cova cada vez mais funda estreita mais mais. Meus gemidos gritos uivos guais guinchos miados ofegos ah oh ai ui nhem ahah minha evaporação meu suicídio gozoso glorioso.





A contrário do que se pode pensar, os poemas dali não eram mais arrebatamentos de juventude nem distração da maturidade. Escritos e revisados ao longo da vida, Drummond chega a ensaiar um lançamento dos poemas eróticos nos anos 50, mas desiste:


A ideia da publicação en secret dos poemas eróticos foi posta de lado: iria desmoralizar-me até a décima geração. Imagine que a notícia chegou a ser publicada nos jornais!

No entanto, durante a década de 1970, um ou outro poema seria esparsamente editado em revistas para o público masculino como Status, Ele & Ela e Homem. Parece que estavam em fase de teste o poeta, a poesia e o público.


Pouco depois, em 1985, Drummond cedeu 20 dos poemas de O amor natural para a tese “O erotismo nos poemas inéditos de Carlos Drummond de Andrade”, de Maria Lúcia Pazo Ferreira, pela UFRJ.


Como escorpiano obcecado, como fez com o dicionário de Horácio de Almeida, não apenas cedeu, como orientou, sugeriu bibliografia, trocou inúmeras cartas com a estudante e “ajudou a circunscrever o universo de análise (…) limitando-se à abordagem do misticismo sem fervor religioso”. Na tese, a análise de O amor natural pela via do místico, estabelecendo relações com a tradição oriental, livra-o de ser incluído na onda pornográfica que se avolumava naqueles tempos, o que enfraqueceria toda sua potência poética.


Ao pegar pela mão e acompanhar de tão de perto os poemas, primeiro para a universidade, e somente depois de sua morte liberá-los para as prateleiras das livrarias, direciona a leitura da crítica especializada e previne futuros equívocos. Digamos que Drummond dá o caminho das pedras.


Se ainda há quem torça o nariz para tema tão sublime e natural quanto clássico, sugiro versos do próprio Drummond:


Assim o amor ganha impacto dos fonemas certos no momento certo, entre uivos e gritos litúrgicos, quando a língua é falo, e verbo a vulva, e as aberturas do corpo, abismos lexicais onde se restaura a face intemporal de Eros (…). 

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