Se Bartleby fosse poeta
- ruafrutapao
- 20 de abr. de 2019
- 4 min de leitura
Atualizado: 5 de out. de 2019
Ou o poema subindo pela caneta,
atravessando seu próprio impulso,
poema regressando.
“Súmula”, Herberto Helder
Gastei uma hora pensando um verso/que a pena não quer escrever, são os primeiros versos de “Poesia”, de Carlos Drummond de Andrade. Acontece que “um verso/que a pena não quer escrever” guarda certa semelhança de sentido com outro célebre refrão – se podemos chamá-lo assim. O gauche mineiro ecoa na fala do personagem Bartleby do americano Herman Melville: “I would prefer not to”.
A pena, na oração em destaque, se transforma em um personagem dotado de subjetividade na medida que se comporta na chave da resistência: ela pena não quer. O objeto – pena – parece ser animado no sentido latino mesmo do termo; isto é, o objeto tem anima, tem alma, como se fosse um ser vivo (seria isso a que chamam alma penada?). Transformada em um personagem, a pena, então, se reserva o direito de recusa. A pena não quer escrever; ouvimos ao longe ela dizer: eu preferiria não.
Na mitologia grega, o deus-tempo, Cronos, come seus filhos. O deus-tempo atua ainda e come os minutos do relógio no pulso do poeta. Durante uma hora completa, a pena não cede ainda que o poeta insista em procurar nas palavras em estado de dicionário alguma combinação de modo que possam dizer. Mas dizer o quê? Dizer um verso “inquieto, vivo”, “cá dentro”.
A questão é que o verso também “não quer sair”. O poeta está, então, em clara desvantagem e é destituído do seu poder de criador. Abandonado à própria sorte, se vê sozinho no desejo de produzir já que tanto seu intercessor físico, a pena, não quer escrever e o verso, seu intercessor, digamos, metafísico, não quer sair.
A luta, quase corporal, é mesmo desigual. Que opção lhe resta, senão encarar a mudez da folha limpa e branca? Lemos:
Poesia
Gastei uma hora pensando um verso
que a pena não quer escrever.
No entanto ele está cá dentro
inquieto, vivo.
Ele está cá dentro
e não quer sair.
Mas a poesia deste momento
inunda minha vida inteira.
Há um intervalo de tempo em que, aparentemente, o nada acontece. O processo criativo está em suspensão e o silêncio opera.
O dilema entre processo criativo e produto criado só é diluído a partir do instante em que o poeta assume a força da negação e da dificuldade desse mesmo instante poético. A adversativa “mas”, no penúltimo verso, traz consigo a aposta do poeta no negativo para afirmá-lo positivamente (“fazer da interrupção um caminho novo, diz o outro mineiro, Sabino).
“Gastei”, “não quer escrever”, “não quer sair” – o poema acontece na negação, na dificuldade, no dispêndio. Drummond escreve, portanto, um poema a partir da tentativa fracassada de escrever um poema. Escreve, na verdade, não um poema, mas o registro da falta, do momento em que o tempo passa, a pena falha e o verso falta. Escreve intempestivo: fora do tempo, contra o tempo. É justamente no duro embate da trinca tempo-pena-verso que a poesia surge e inunda sua vida inteira – descobriremos na última linha.
Os versos “a poesia deste momento/inunda minha vida inteira” nos oferecem, no mínimo, dois tempos: o tempo em que o autor escreve – o agora dele, o momento dele; e o tempo futuro – a vida inteira dele a partir do pronome possessivo minha. E tudo isso se estica até um outro tipo de futuro chamado agora e sempre: o tempo é agora toda vez que abrimos o livro e lermos “Poesia”.
A poesia não só é anterior ao poema como o ultrapassa. Uma questão conceitual, aliás, já aponta ao dizer o poema Poesia, isto é, um poema (forma) cujo título é “Poesia” (um acontecimento), com P maiúsculo. 1 Poesia, desta vez sem aspas, aparece como uma “prece ao vazio, diálogo com a ausência”, segundo Octávio Paz. Diz mais o mexicano:
(...) há poesia sem poemas; paisagens, pessoas e fatos podem ser poéticos: são poesia sem ser poemas. Pois bem, quando a poesia acontece como uma condensação do acaso ou é uma cristalização de poderes e circunstâncias alheias à vontade criadora do poeta, estamos diante do poético. Quando – o passivo ou ativo, acordado ou sonâmbulo – o poeta é o fio condutor e transformador da corrente poética, estamos na presença de algo radicalmente distinto: uma obra. Um poema é uma obra. A poesia se polariza, se congrega e se isola num produto humano: quadro, canção, tragédia. O poético é poesia em estado amorfo; o poema é criação, poesia que se ergue. Só no poema a poesia se recolhe e se revela plenamente. (PAZ, 2012, p. 22)
Não dá pra negar que em “Poesia”, de Drummond, reverbera certa noção do conceito de poesia de Paz. Estar diante de uma pena que não quer escrever, de um verso que não quer sair, de uma hora que se gastou – isto é, em “circunstâncias alheias à vontade criadora” – é estar diante do poético.
Penso ainda que em forma de poema o autor mineiro parece dizer o mesmo que Paz em forma de ensaio: o “poético é poesia em estado amorfo”. O instante-em-que-não seria, portanto, o acontecimento Poesia que assume contornos de “quadro, canção, tragédia”. O instante-em-que-não, para Drummond, é uma pedra que acompanha sua vida inteira e é sob essa pedra-poesia que, depois de lapidada, se dá a ver um poema. Poemas feitos de objetos que são símbolos mudos (como pedra, embrulho, coisa), completaria Silviano Santiago.

Me lembro agora de que o poema “Poesia” foi publicado em 1930 no livro de estreia de Drummond cujo título é Alguma poesia.
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