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Triunfo: assim nasce uma mulher


canal no forte philipe, seurat, 1890
canal no forte philipe, seurat, 1890

Um dos principais documentos do Acervo Clarice Lispector no Instituto Moreira Salles é a magra Revista Pan. É ali que Clarice faz sua primeira aparição na imprensa: o conto “Triunfo” ocupa três páginas da edição número 227, de 25 de maio de 1940.


Como a gente só tem dois ou três temas na vida, estão em “Triunfo” os fios a que toda obra clariciana se ligaria depois. O conto não foi recolhido em nenhum dos livros publicados posteriormente.


“Triunfo” fala de separação. O espaço doméstico é descrito a partir do ponto de vista de Luisa, que, na noite anterior, tivera uma discussão atormentada com o marido. Ele vai embora.


A ausência, o vazio e a incerteza dão novos contornos aos itens da casa que antes pareciam não existir. Luisa, diante da presença do marido, enxergava aquilo que era possível para uma mulher na década de 1940. Casa e casamento, objeto e objetivo principal.


Soam 11 horas, compridas e descansadas. Um pássaro dá um grito agudo. Tudo imobilizou-se desde ontem, pensa Luisa. Continua sentada na cama, estupidamente, sem saber o que faça. Fixa os olhos numa marinha em cores frescas. Nunca vira água com tal impressão de liquidez e mobilidade, nem nunca notara o quadro. De repente, como um dardo, ferindo agudo e profundo: “Ele foi embora”.

O que fazer quando se quebra a rotina? O que fazer quando se vai o homem pelo qual estou ligada afetiva e juridicamente? A personagem vê a si mesma em abandono e estranha o lugar que lhe deveria ser, supostamente, familiar.


Tudo em volta é ruidoso.


À imagem de Luisa “imobilizada”, “sentada na cama”, “fixa”, “descansada” contrapõe a água pintada no quadro, líquida, móvel, corrente, fluida. Ao notar suas características em posição às da marinha, Luisa repete a agudeza do pássaro e reconhece: o homem foi embora.


Aceitar já é processo de elaboração.


Aceitar dói menos.


Depois de chorar até se sentir lassa, “vai até a pia e molha o rosto”. (Água.) Com os olhos agora limpos, Luisa consegue ver que “a sala de jantar [que] estava às escuras, úmida e abafada” é de súbito iluminada pela claridade das janelas abertas de uma só vez. O ar é novo e toca em tudo. Ela percebe que as coisas – sempre as coisas – “não estavam de todo destituídas de encanto. Tinham vida própria…”.  


Mais que isso: se antes o mundo inteiro era a parte interna (seu homem, seu quarto – lençóis e travesseiros –, teto, noite sem lua), agora, inclinada na janela – área externa –, Luisa visualiza as árvores, a estrada de barro vermelho ao longe. Reorientada em seu próprio território, parte para a ação: recolhe algumas roupas e vai lavá-las num grande tanque no fundo do quintal da casa. (Água.)


A cena da lavagem de roupas tem forte nuance erótica: “Assim inclinada, movendo os braços com veemência, o lábio inferior mordido no esforço, o sangue pulsando-lhe forte no corpo, surpreendeu a si mesma (…). Uma brisa doce arrepiou-lhe os fiozinhos da nuca, secou-lhe a espuma nos dedos. Luisa terminou a tarefa” e, exausta, “sentia um calor…” quando, subitamente vem a ideia de se banhar na “torneira grande, jorrando água límpida”. “Tirou a roupa, abriu a torneira até o fim e a água gelada correu-lhe pelo corpo, arrancando-lhe um grito de frio.” O banho improvisado “fazia-a rir de prazer (…)” e “de sua banheira abrangia uma vista maravilhosa, sob um sol já ardente”.


Não há como deixar de evocar aqui o valor simbólico da água nas diversas tradições literárias e culturais. Desde o rio de Heráclito, no qual nem as águas, nem o homem são os mesmos depois do mergulho – tudo, tudo flui; passando pelos rituais católicos, como o batismo e a água-benta; e ainda o culto na mitologia céltica “[às] águas [que] simbolizam a substância primordial de que nascem todas as formas e para a qual voltam, por regressão ou por cataclismo”¹, garantindo longevidade, força criadora e cura. Água.


Dentre os cinco rios do Hades, está o rio Lete, cujo toque nas águas (letais) faz com que as almas esqueçam suas memórias terrenas e iniciem o processo de retorno ao mundo dos vivos. Água.


Um dos dois principais mitos sobre o nascimento de Afrodite tem estreita relação marinha: o titã Cronos corta os órgãos genitais do déspota Urano e joga-os ao mar e é desse contato que nasce a deusa da beleza, fertilidade e sexualidade. Afrodite: afrós para os gregos; espuma, esperma para nós.


Luisa, assim como a deusa que vem do mar, nasce pela água: “Olhou em torno de si a manhã perfeita, respirando profundamente e sentindo, quase com orgulho, o coração bater cadenciado e cheio de vida”.


Ao experimentar, no corpo, a liberdade, a personagem agora é ela mesma a “marinha em cores frescas”. Ela é a “água com tal impressão de liquidez e mobilidade” que antes nunca havia notado.


Com o banho, vem a certeza triunfante: o marido voltaria “porque ela era mais forte”, porque é dela que ele precisa e depende.




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