Trouxeste a chave - uma pergunta de Doris Salcedo
- ruafrutapao
- 29 de mar. de 2019
- 4 min de leitura
Atualizado: 28 de abr. de 2019

O que se passa entre
Começo dizendo que o pé-direito quase tende ao infinito. A sala é gigantesca. Dos poucos que entram, muitos saem rapidamente. Sem janelas, a instalação Neither é, sobretudo, um lugar de bloqueio, de impedimento, de entrave. Grandes placas de gesso seguram grades de ferro em formato de losango. Há partes da sala em que grades encimam outra grades. A sobreposição do material, no campo visual, tem a função de ativar, no campo afetivo, certa sensação de insaída.
Em outras partes, veem-se apenas as marcas dessas grades - elas já não estão lá, só o relevo permanece. O que diz essa falta? Essa falta parece que fala: memória. Alguma coisa esteve aqui. Alguma coisa pesada confrontou a superfície (ainda mole?) do gesso e ali deixou um traço, uma inscrição indelével. Nesse ponto, Freud nos dá a mão e diz que a experiência da dor é justamente essa inscrição indelével cuja significação é sempre atribuída (1) e posterior (2).
O que fazemos, então, quando notamos na parede aquilo que não está? Quando notamos que o gesso guarda apenas um traço da passagem de uma grade? Nós atribuímos, à distância, significado a Neither, a nosso modo, a partir da experiência pessoal (1) e posterior (2).
Voltando à parte interna da galeria, é preciso dizer que ela beira o excesso da claridade, com sua luz branca e chão cinza. Há dois orientadores de público guardando a entrada da galeria como os anjos guardavam a entrada do jardim do éden depois da expulsão - pouco amistoso tanto aqui quanto lá.
Entre a grade e a grade
Nessa descrição canhestra da Galeria Doris Salcedo em Inhotim talvez não esteja claro que Neither é também um recorte urbano, duramente urbano. Dentro da galeria, uma fatia arrancada da cidade, transposta da cidade.
E, nesse sentido, Neither, que considero uma espécie de obra de bloqueio, é também um grandessíssimo lugar-comum. Nós, espectadores, estamos acostumados - estamos familiarizados - às grades, às janelas, maçanetas, chaves, câmeras, campainhas, interfones, portarias: a lista de artifícios de segurança (de bloqueio) é extensa.
Se valendo da condição mesma do museu a céu aberto em que a galeria está instalada, Doris Salcedo faz um jogo tão sutil quanto potente.
Ora, se a base para a palavra é a sílaba, a base para a arte é a tela. No sentido dicionarizado, a palavra tela é uma superfície em que se projeta, se representa algo. Tela da tv, tela do celular, tela de pintura. Mas tela também é aquilo que na janela serve de segurança.
Tanto em uma concepção quanto em outra, pode-se dizer que tela seria, sobretudo, aquilo que se coloca entre: entre o dentro e o fora, entre o pintor e a representação, entre a janela do quarto e o resto da cidade, entre quem assiste um vídeo e quem produz esse vídeo.
Enquanto arte, Neither é “pintada” sobre uma tela cuja função é telar, isto é, impedir que.
De novo, do lado de fora, estamos na cidade: uma cidade telada é também uma cidade em tela o que equivaleria, em certa medida, dizer que grades, portas, portões, chaves, janelas são um devir-arte.
Volto a descrever a galeria pela perspectiva externa: o telhado surge tímido, quase plano, sobre um muro alto reto cujo acabamento não tem requinte. O portão segue a linha dura para encerrar esse prédio de cores pálidas e, torno a repetir, sem janelas.
Arquitetura seca, econômica, que muito bem poderia se passar por uma casa facilmente assinada por um membro da bauhaus.
Ou um presídio.
A estética da galeria é, no mínimo, ambivalente, como ambivalentes são as questões dali.
A paisagem idílica que cerca a Galeria Doris Salcedo faz saltar esse pedaço que chamo duramente urbano com sua estética econômica. O branco, a luz forte e artificial, o chão cinza cimentados: tudo está em franca oposição ao natural, ao selvagem, à terra, ao colorido do entorno. Nesse jardim do éden cravado no interior de Minas, o visitante anuviado precisa esquecer seu estado de adão e eva em que tudo é lindo, tudo é maravilhoso. Neither obriga a lembrar a cidade e seus signos de bloqueio, vigilância, segurança.

O que vemos, o que nos olha
Destaco dois movimentos das instâncias de prisão.
Se a instância de prisão se coloca no intervalo de dentro para fora, seríamos quem somos: moradores de casas, casas em condomínios. É estar preso por vontade: habitantes de nossos quartos, motoristas de nossos carros, compradores em shoppings. Estamos seguros (presos) por escolha.
Se a instância de prisão se coloca de fora para dentro, portanto é imposta, o sujeito não está seguro, mas está preso, impedido de sair. Sua liberdade está fractada por grades, janelas, portas e chaves.
Repare que os elementos são os mesmos. O que muda é sua instância de uso e isto muda tudo - muda, sobretudo, a condição do sujeito.
A condição do sujeito: quem observa Neither pode não perceber que também é parte da instalação. Num primeiro momento, somos agentes de Neither, observando suas grades e paredes, como dissemos.
Dois passos atrás e já somos participantes de Neither. Um observador externo vê não apenas as grades e as paredes, mas um sujeito entre essas mesmas grades e as paredes.

A lógica que Doris Salcedo propõe é amplíssima. Estamos vendo ou vivendo (n)a instalação? Estamos vendo ou sendo vistos? Somos agentes participantes ou agentes participados? Touché: somos isso e aquilo.
Cabe dizer que a artista é colombiana de Bogotá - cidade cujos predicados relacionados à violência se dispensam.
Um contato mais estreito com as obras e as instalações de Doris Salcedo explicita o paradigma que circunda sua produção. A artista constrói uma arqueologia da violência urbana em que homem é o agente principal. Os signos de agressão e os símbolos de ameaça, construídos, instituídos e alimentados por esse homem, estão presentes na cidade e, ao mesmo, adormecidos por quem vive na cidade. De tanto olhar (movimento ativo), já não vemos mais o que nos vê, o que nos circula. Doris se impõe contra a amnésia histórica. Lembrar para não esquecer.

Relembro Doris Salcedo na onda da campanha #5WomenArtists iniciada pelo National Museum of Woman in the Arts. O movimento é uma chamada à discussão e circulação de artistas mulheres.
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